28.1.09

Supercanhões pacifistas

Dos submarinos às viagens espaciais, Jules Verne ficou conhecido como um dos pais da moderna ficção científica e por ser um verdadeiro profeta das tecnologias que se tornaram possíveis muitos anos após sua morte. De la Terre à la Lune é uma de suas obras mais consagradas justamente pela quantidade de antecipações que ele fez em relação ao primeiro voo tripulado rumo à Lua no projeto Apolo. Do local de lançamento, na Flórida, ao número de astronautas à bordo, três em ambos os casos, passando pelas dimensões da cápsula espacial, o escritor francês parece ter previsto com riqueza de detalhes eventos que só ocorreriam um século depois de ele os ter escrito.

Porém, uma das decisões mais criticadas posteriormente foi o fato de ele ter escolhido como meio de lançamento não um foguete, como ocorreu na realidade, mas sim um supercanhão. Os especialistas lembram que um projétil lançado por uma arma como a mostrada no livro de 1865 jamais poderia ser tripulado, pois as forças de aceleração esmagariam qualquer ser humano no interior daquela bala espacial. Mesmo assim, neste aparente erro nas profecias vernianas, houve um outro caso de antecipação tão ou mais impressionante que os do projeto Apolo. A coincidência foi lembrada em um documentário produzido pelo canal a cabo Discovery Channel chamado Visionários, que enfatizou a importância de Jules Verne e de seu colega inglês, H. G. Wells, para a FC e a capacidade da dupla em se antecipar à realidade. O trecho pode ser visto aqui.

O documentário mostra que a ideia do fictício Impey Barbicane inspirou um engenheiro canadense chamado Gerald Vincent Bull (1928-90) a tentar mandar satélites artificiais para a órbita terrestre lançados por canhões. A inspiração surgiu em 1963 e foi posta em prática exatamente 100 anos depois da publicação do livro. Bull soldou várias peças de armas navais e conseguiu construir uma arma, com apoio do Canadá e dos EUA, que, apesar de ter apenas uma fração do comprimento da imaginada por Verne (o Columbiad tinha mais de 280 metros, a do canadense, 53), lançou sua carga a uma altura de 180 quilômetro, mais da metade do necessário para se alcançar o objetivo.

Infelizmente, os planos de Bull se tornaram caros demais e ele perdeu financiamento no ocidente. O engenheiro acabou a carreira trabalhando para o governo de Saddam Hussein (1937-2006), no Iraque, onde fez parte do Projeto Babylon, um novo supercanhão com fins teoricamente pacifistas. Ele acabou assassinado por um pistoleiro no país que havia adotado para viver, a Bélgica. Quatro anos depois de sua morte, o escritor britânico Frederick Forsyth lançou um livro chamado Fist of God especulando sobre o alcance bélico das invenções de Bull nos bastidores da segunda guerra do Golfo, para a libertação do emirado do Kuwait (1991). Nessa obra, os planos de exploração espacial de Bull são a base de uma arma mortal conhecida como Punho de Deus.





E assim, cumpriu-se um curioso ciclo. Uma ideia que nasceu para a ficção declaradamente antibelicista de Jules Verne inspirou a vida real na forma dos projetos de Gerald Bull e voltou para as páginas da ficção, desta vez na forma do thriller de guerra e de espionagem de Frederick Forsyth. Entre Barbicane e Bull, entre o Columbiad e o Punho de Deus, entre Verne e Forsyth, existe uma lição que podemos aprender sobre como algumas boas intenções podem se perder no caminho e se transformar em algo bem mais perigoso.

5 comentários:

Giseli Ramos disse...

É aquela velha história da ciência ser uma faca de dois gumes...

Romeu Martins disse...

Ou de dois legumes, como diria o velho Vicente Matheus...

Mas é isso mesmo, do veneno pra cura a diferença é de dosagem. Mas o que eu acho curioso nesta história é o ziguezague da ficção pra realidade de volta pra ficção.

Camila Fernandes disse...

Não sei de onde você desenterra essas coisas, Romeu.

Desenterra e faz a datação por carbono... rs!

Anônimo disse...

Ah, o Google é o moderno oráculo, minha cara. Faça as perguntas certas que ele te responderá :-)

(Romeu, em trânsito)

Leonardo Peixoto disse...

A vida realmente imita a arte !